Em 2017, recém chegado a Israel para uma experiência de um ano na comunidade dos Irmãos e Irmãs de Nossa Senhora de Sion em Ein Kerem, conheci a irmã Anne Catherinne, uma francesa de estatura mediana, de passos firmes. A firmeza de seus passos trouxeram-na a Jerusalém em 1969, e sustentaram-na durante três guerras. Hoje, cinquenta anos depois, estes mesmos passos levá-la-ão de volta ao seu país.
Algo que eu poderia dizer sem hesitar é que se trata de uma mulher apaixonada pelo que faz. Tal paixão advém da convicção de sua missão: o estudo e a acolhida. Recordo-me de um episódio, por ocasião da festa do Rosh Hashana, o ano novo judaico, quando me convidou a acompanhá-la em visita a diversas casas na vila de Ein Kerem: batendo de porta em porta alegremente, oferecia aos vizinhos uma cortês visita e presenteava-lhes com uma romã, de acordo com o costume judaico.
Naquele momento, não me preocupava muito o peso dos sacos repletos de romãs que eu lhe carregava. Eu podia perceber a alegria que todos tinham quando, ao abrir da porta, se deparavam com uma mulher extraordinária, que, com seu sotaque francês, lhes falava nas mais variadas línguas, inclusive o Hebraico, a língua local.
À iminência de seu retorno à França, convidei-a para uma pequena conversa, uma oportunidade em que ela pudesse partilhar conosco sobre os segredos e desafios nestes cinquenta anos de sua presença em Israel. Essa conversa, totalmente informal, eu partilho com vocês agora.
Irmã, por que Jerusalém? Por que a Congregação pediu para a senhora vir para cá?
Bem, há um bom tempo, já que eu cheguei aqui em 1969, a congregação havia decidido enviar irmãs a Israel. Eu acredito que com os irmãos seja a mesma coisa: mandavam irmãs mais jovens para passar um ou dois anos em Jerusalém para conhecer o país, aprender a cultura, ver tudo o que se passa, e, se possível, estudar um pouco de Bíblia e Judaísmo no local. Pois esse é o trabalho da nossa congregação: ter consciência, como cristãos, que Jesus era judeu. Não podemos nos aproximar d’Ele de outro modo, sem nos enraizarmos nesse povo e em suas tradições.
Foram muitas as dificuldades quando a senhora chegou aqui?
Aqui é sempre difícil desde 1969. Eu acredito que passei por uma ou três, senão até quatro guerras e muitas revoluções difíceis. Certamente eu não sofri como as pessoas do país, como os árabes e os judeus, pois minha família e amigos não estavam implicados. Mas o sofrimento é sempre o de se situar entre os dois povos.
E como se passou durante a guerra? Ela é sempre difícil, mas como foi para uma irmã que chega aqui e passa por isso?
A guerra mais traumatizante do ponto de vista psicológico foi a guerra do golfo, devido aos ataques do Iraque. Havia o medo dos mísseis químicos, e a cada alerta nós tínhamos que entrar numa câmara completamente selada e equipada com mascara e aí permanecer até que o alerta passasse e as sirenes autorizassem a saída. Então, foi muito traumatizante, pois para o povo judeu tal experiência de certa forma remetia às câmaras de gás da Segunda Guerra; era o medo visceral de ser exterminado novamente.
O aspecto bonito, porém, se você quiser, era que os árabes estavam tanto implicados nisso como os judeus, já que em Jerusalém temos as duas populações. Acontecia de se encontrarem na mesma câmera selada judeus e árabes, estavam todos no mesmo regime.
Aqui em Ein Kerem era a mesma coisa. Todos partilhavam da mesma experiência: quando havia o alerta nos encontrávamos lá todos juntos na mesma câmara. E eu tive o privilégio, se eu posso assim dizer, de trabalhar em um hospital onde era comum ver as enfermeiras usando máscaras. Na minha câmara havia tanto árabes como judeus. É uma lembrança ruim. Ao mesmo tempo, porém, foi uma coisa que me marcou no contexto daquela vida.
Houve também a guerra do Líbano, que foi muito traumatizante no sentido psicológico. Muitos morreram, e todos se perguntavam se aquela guerra tinha sentido ou não. Muitos soldados se recusaram a ir, mas eram obrigados.
E qual foi o seu trabalho quando chegou aqui em Jerusalém?
Eu cheguei primeiramente por um período de dois anos para estudar. Logo no início fui aprender hebraico em um ulpan.
Foi difícil?
O hebraico não é realmente difícil, mas é preciso aprender, pois se você não fala… eu tinha estudado um pouco de Hebraico Bíblico no Instituto Católico de Paris. E finalmente aprendi quando cheguei a Ein kerem, pois eu me lancei a falar com os outros, com os grupos… No início eu não falava bem, mas era preciso falar… Aiinda hoje eu não julgo que fale muito bem.
Este ano é o seu último em Israel. Após 50 anos de sua permanência neste país, eu gostaria de saber qual o sentimento que chega ao seu coração nesse momento? O que a senhora pensa?
O que eu penso? Eu sou muito grata por tudo o que eu vivi, porque tudo foi realizado. A Congregação me pediu para estudar a Bíblia e o judaísmo. A missão da minha vida foi o ensino e a acolhida, a acolhida de todos os que chegavam aqui em Ein Kerem… Já que vivi a maior parte da minha vida aqui, eu devo dizer que aprendi muito.
E ensinou também…
E ensinei também muito, mas eu ensinei porque eu muito aprendi com o contato que tive com as pessoas, com as pessoas dessa vila e dos grupos que chegavam. Todo esse contato confirmava o ensinamento. É muito interessante, então eu tenho um grande sentimento de gratidão a Deus pelo que Ele fez na minha vida… o que eu não procurei, mas se aconteceu assim. Eu fui muito ajudada no início pelo irmão Pierre Lenhard, que se encontrava aqui em Jerusalém. Ele me inspirou a estudar, não apenas na universidade, mas também com esse método dos judeus que consiste em se debruçar sobre o texto e escutar o texto e deixá-lo falar. E jamais tentar estudar o judaísmo para procurar as raízes judaicas, isso virá sozinho quando você escuta as Escrituras à luz da Tradição.
E o que a senhora pensa sobre o trabalho da Congregação de Nossa Senhora de Sion em Israel? Pois o trabalho deve continuar.
Com certeza deve continuar. É um grande desfio. Eu penso que ele deve continuar com os irmãos e irmãs que estudam na universidade se possível em hebraico, numa escola judaica para aprofundar tudo isso. Que ensinem! Que ensinem, sobretudo no mundo cristão, essa mesma escuta praticada pelo irmão Pierre Lenhard, que morreu recentemente, ele que não fala da raiz, mas da seiva, que é a continuação.
E se encarnar no país, saber a língua, ter contato com as pessoas, não esquecer do povo palestino também. Eu tive a oportunidade de ensinar por 20 anos, em uma universidade em Belém, o judaísmo ao Palestinos. Conhecer esse povo que é aberto e não conhece o outro. E se possível se inserir na Igreja local, o que para mim é muito importante.
E quais os conselhos que a senhora poderia dar para os jovens religiosos e religiosas que pensam vir a Israel mas tem medo?
Eu acredito que as pessoas que vêm a Israel não podem permanecer aqui forçadas. Mas a primeira coisa a fazer é aprender a língua, o hebraico primeiramente, e se possível o árabe, fazer de tudo para conhecer as pessoas que moram aqui, estudar, se possível, na Universidade Hebraica, estudar o mínimo para poder acolher as pessoas, como, por exemplo, aqui em Ein Kerem nós acolhemos muitos israelenses, mas também muitos grupos de cristãos em peregrinação. Saber dar o mínimo de informação, e não ficar apenas dentro do seu próprio mundo, fazer tudo para guardar os lugares preciosos como Ein Kerem, Ecce Homo e Ratisbonne, pois são lugares realmente preciosos por causa do Padre Maria, das nossas fontes e também toda essa população israelense, e que é fascinada por estes lugares e que faz mil questões, e que, através de nós, conhecem o cristianismo de outra maneira; o Ecce Homo, por exemplo, pela influência que exerce sobre pessoas que o visitam do mundo inteiro, pelo local em que se encontra, que desenvolve cursos em diferentes línguas para formar os cristãos.
A senhora tem algum arrependimento nestes 50 anos?
Eu receio em falar de arrependimentos. Eu quero partir de maneira positiva assim como cheguei: tendo confiança!
Mas existe alguma coisa, depois de 50 anos, que a senhora pensa que poderia ter feito diferente ou não?
Eu penso que não realmente diferente, mas talvez ter sempre o senso de abertura e de enraizamento e não se preocupar. A vida depende de nós, mas Deus está sempre aqui. Juntamente como o Padre Maria e as pessoas de boa vontade.
E no último dia, antes de embarcar no avião para a França, se eu puder perguntar qual será sua última frase em Israel qual seria?
Eu realmente ainda não pensei nisso, eu não sei o que eu direi, talvez eu diga: “Eu estou muito feliz.” Feliz não por deixar o país ou retornar à França, mas pelo novo desafio. Minha alegria é o sentimento de liberdade frente ao passado, ao presente e ao que está por vir em Deus.
Irmã, eu acredito que essa foi realmente uma boa conversa, agradeço imensamente, pois tive a oportunidade de ser seu aluno. Agora que estou começando a minha jornada aqui, agradeço a Deus por esse belo exemplo que a senhora, o padre Maria e tantos outros, nos dão. Certamente eu penso que a senhora, mesmo diante de algumas dificuldades, ficou aqui por 50 anos, então peço a Deus a graça de ficar pelo menos 25. Obrigado.