No princípio Deus criou o céu e a terra. Esta sentença que abre a Sagrada Escritura reveste-se de uma importância capital. A verdade que ela descortina serve de base para todo o edifício da revelação bíblica. De fato, o primeiro versículo da Bíblia declara que Deus é o Senhor soberano de todas as coisas que existem. Ele é a anterioridade absoluta da qual vêm e dependem todos os seres. Tudo quanto existe deve ser referido ao Senhor do Universo . Assim, Ele, como o Criador de tudo, é não somente um sujeito paciente que pode ser conhecido por nós de certa forma e em certa extensão, mas Ele próprio é o sujeito agente que, em nós, conhece Si mesmo e ao universo, já que o nosso intelligere nos veio d’Ele e depende d’Ele para ser.
No princípio
A expressão “no princípio”, que traduz o termo hebraico bereshit, em Língua Portuguesa, é um adjunto adverbial, o qual pode ser de dois tipos: de tempo ou de lugar. Retornamos à gramática pois é importante entendermos com exatidão a literalidade do texto sobre o qual meditamos. Se lemos “no princípio” como um adjunto adverbial de tempo, então entendemos que a sentença afirma que, no instante primeiríssimo do tempo, o qual também é uma criatura, Deus criou o céu e a terra, isto é, a totalidade de tudo aquilo que existe, ou pelo menos, a massa inicial que, por contínuos movimentos de mudança, sob a ação de Deus mesmo, daria existência à multiplicidade de seres.
Todavia, se consideramos “no princípio” como um adjunto adverbial de lugar, a compreensão que podemos ter é totalmente outra, e são vários os momentos ao longo da tradição interpretativa bíblica que o entenderam como uma localidade transcendente. Literalmente, se “no princípio” for um adverbial de lugar, e se por “céu e terra” se compreende tudo aquilo que foi criado, então, logicamente, trata-se de um “lugar” não criado. E como tudo que não é criado é Deus, logo, o “no princípio” referir-se-ia a um lugar em Deus mesmo, o “seio divino” para usar uma imagem mais poética.
Esta forma de compreender o “no princípio” estaria de acordo com o que nos diz o Evangelho segundo São João em seus versos de abertura: “No princípio era o Verbo. E o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus.” Assim, o quarto Evangelho nos diz com toda clareza que o “princípio” no qual todos os seres são criados é Deus mesmo, o Filho Eterno de Deus que também se chama Verbo de Deus, e que, para nossa salvação, haver-se-ia de encarnar. Aqui se explica porque Jesus “conhecia a todos” (Jo 2, 24). Em um sentido divino, todos nós habitamos no Filho de Deus. Os Atos dos Apóstolos confirmam essa doutrina quando subscrevem um verso da literatura grega: “porque n’Ele existimos, nos movemos e somos” (At 17, 28).
Algumas traduções contemporâneas da Bíblia têm preferido traduzir o primeiro versículo de Gênesis como “Quando Deus criou o céu e a terra…” ou “No princípio, quando Deus iniciou a criação do céu e da terra…”. A razão de um estilo tão bizarro é que, segundo os especialistas, o texto hebraico antigo permitiria uma tal tradução. Entretanto, devido à importância e peso que tem para a tradição cristã e a vivência da fé a sentença “No princípio Deus criou o céu e a terra”, nos parece razoável e justo lê-la segundo a tradução tradicional.
Em Hebraico, a palavra Bereshit começa com a letra bet, que tem esta forma: ב . Uma tradição interpretativa judaica que recebe o nome de Midrash dá a seguinte explicação para o fato de o ב (bet) ser a letra que abre a Torah (o que nós chamamos de Pentateuco): tendo em conta que a Língua Hebraica se escreve da direita para a esquerda, e tendo em conta que o bet (ב) está aberto para o lado esquerdo e fechado para o lado direito, compreende-se que a Bíblia sugere que o homem não deve se deixar levar por uma doentia curiosidade sobre o “que fazia Deus antes da criação”; também nos ensina que a vida é um fluxo para o futuro e não para o passado[1].
Uma outra interpretação interessante é que, começando a Bíblia com a segunda letra do alfabeto hebraico, bet (ב), a lição que se tira é que devemos começar (os nossos projetos, recomeçar a vida etc) por onde podemos e não pelos começos ideais. Comece a trabalhar nos seus planos de vida com o que você já tem.
Deus
A palavra hebraica para Deus neste versículo é Elohim [אלהים]. A tradição judaica[2] interpretou que este nome refere a Deus em seu atributo de Justiça. O Deus justíssimo é que criou o universo, e por isso o homem deve guiar-se por ela, a justiça, de modo a conformar-se à vontade divina. Contudo, com a entrada do pecado no mundo, Deus haveria de revelar o seu atributo de misericórdia, sem a qual o pecador não poderia passar, através do nome patenteado a Moisés: YHWH.
Criou
Criar é o primeiro verbo que tem a Deus por sujeito na Bíblia em ordem canônica. A primeira ação referida a Ele é o ato de criar. Depois que confessamos a existência de Deus, confessamos primeiramente que Ele é o Criador de tudo o que existe:”creio em Deus Pai Todo-Poderoso Criador do Céu e da Terra”.
O verbo hebraico barah [ ברה ] é reservado para a atividade divina; e não tem, a princípio, a denotação de criação do nada[3]. A criação ex-nihilo, todavia, é uma doutrina dogmática, e se apóia sobre outros testemunhos da Bíblia e da Tradição.
A ação da Santíssima Trindade é uma – assim o cremos. Por isso, acreditamos que o ato da Criação é uno e pode ser referido a cada Pessoa Divina: o Pai é Criador, o Filho é Criador, o Espírito Santo é Criador. O Deus que criou o Céu e a Terra é a Santíssima Trindade.
O Céu e a Terra
A expressão o Céu e a Terra, um par de opostos [em cima e em baixo], designa o conjunto total de tudo aquilo que existe; pois cada coisa que existe está na terra ou no céu, isto é, ou na terra ou no espaço cósmico quase infinito. A interpretação tradicional da Igreja, contudo, vê aqui um sentido a mais nessa dualidade. O céu pode designar a esfera dos seres não materiais, isto é, os anjos. Assim, no princípio, Deus criou o mundo físico-material [a terra] e o mundo espiritual [o domínio dos anjos].
O termo céu, no texto hebraico, aparece no plural [céus = שמים]. Assim, pode-se entrever a sugestão de que há outros “céus” além do céu espacial que envolve a terra. Estes outros céus seriam a morada de Deus e dos Santos Anjos. Neste sentido, o Livro de Neemias afirma: “Sois vós, Senhor, vós somente, que fizestes o céu dos céus e todo o seu exército, a terra e tudo o que ela contém, o mar e tudo o que nele se encerra; sois vós quem dais a vida a todos os seres, e o exército dos céus vos adora” (Ne 9, 6). O céu (na dimensão espiritual) é, pois, um lugar de adoração a Deus.
[1] Etz Hayim Torah and Commentary. Pág. 3.
[2] Interlinear Shumash. Pág. 3.
[3] Etz Hayim. Torah and Commentary. Pág. 3.