No Abismo uma Presença

“No Princípio Deus criou o céu e a terra.” Gn 1, 1

Às vezes pode acontecer que nós passamos os olhos sobre as palavras da Bíblia sem apreender o seu real significado. Entendo aqui por “real” significado a “experiência” vital que o autor quis comunicar com as suas palavras. Essa experiência é o entendimento de uma questão da realidade objetiva [Deus, o homem, o mundo] desde a perspectiva divina; quer dizer, Deus que concede ao autor do texto bíblico o dom de compreender aquelas questões como Ele mesmo [Deus] as compreende. 
 
Quando você lê a Bíblia em espírito de fé, isto é, desde a presença do Espírito Santo em você, você exerce o sentire cum ecclesia e se torna capaz, também você, de compreender as coisas desde a perspectiva de Deus. 

No Princípio Deus criou o céu e a terra.

Qual seria, pois, a experiência vital que se encontra sob essas palavras? O que Deus entende sobre o mundo e quer que nós também compreendamos? 
 
Para ter esta experiência vital, iso é, a de compreender o mistério da existência do mundo, ou, digamos ainda melhor, a de entender a própria questão do “existir”, desde a prespectiva de Deus, é preciso que entre Ele e você exista uma relação, e mais do que isso, uma união, é preciso que a sua mente esteja unida à mente de Deus. 
 
Ora, esta relação e esta união foram realizadas, em um plano objetivo, pelo Santo Batismo. Num plano subjetivo, isto é, naquilo que depende de você, esta relação e esta união se exercem, sobretudo, pela oração, que não é outra coisa que a relação direta, não intermediada, entre Deus e você. 
 
Para compreender, portanto, o que significam profundamente as palavras “No princípio Deus criou o céu e a terra”, faz-se necessário que você as ouça, como todas as demais afirmações da fé, dentro do campo da sua relação pessoal com Deus. Um exegeta especialista no Pentateuco, com todo o conhecimento técnico e histórico que possa ter da composição do texto, se não colocar o seu conhecimento dentro da dinâmica da relação pessoal com Deus, não terá da questão senão um conhecimento superficial, ainda que pareça erudito e muito sério. 
 
Na dimensão da fé, todavia, você sabe que aquele que criou o céu e a terra é Aquele mesmo que está dentro de você, e que você adora no Santíssimo Sacramento. No princípio, a Santíssima Trindade, que habita em você e que você come na sagrada comunhão, este Deus criou o céu e a terra. 

No Princípio Deus criou o céu e a terra.

Onde quer que esta afirmação tenha sido dita ou escrita pela primeira vez, quem quer tenha sido o homem que a concebeu, certo é que o fez tendo diante dos olhos a imensidão do céu e da terra. Penso nos olhos do corpo mesmo, e não “diante dos olhos” como uma expressão metefórica para o pensamento. 

Provavelmente, esta verdade, a que é expressa pelas palavras “No princípio Deus criou o céu e a terra”, foi sentida longe da agitação dos centros urbanos [sim, também a antiguidade tinha as suas grandes cidades]. É mais razoável supor que as intuições filosóficas e teológicas são geradas com mais facilidade no silêncio e na solidão do que em meio às futricas, frivolidades e cansaços que temperam a vida urbana de qualquer época. 

Certa vez, em uma ocasião em que estava em pleno deserto da Judeia, enquanto me encontrava um pouco afastado do grupo, aproveitei o ensejo para dar alguns passos adentro para ver como é que é estar a sós no deserto. 
 
A primeira coisa que notei, aliás, é melhor dizer, a primeira coisa que me invadiu, foi o silêncio do deserto. Aqui vale uma comparação: da mesma forma que os curacos negros no espaço, com sua poderosa gravidade, suga tudo ao seu redor, inclusive a luz, o deserto, mal comparando, absorve todos os sons que se emitem nele. Como não há nada para reverberar o som, as palavras que se dizem, o barulho dos passos sobre o terreno arenoso e pedregoso, tudo isso é absorvido no grande silêncio do deserto. 
 
Esta experiência eu a fiz durante o dia; fico a imaginar, contudo, qual não será a experiência do deserto à noite, quando imperam o silêncio e as trevas que se deixam entrecortar apenas pela luz da lua ou das estrelas. É no deserto que se pode ver e sentir “o céu e a terra”, o mundo superior, onde Deus habita, e a terra, o plano onde labutam os homens. 
 
No princípio Deus criou o céu e a terra – esta são palavras que vêm do deserto; são palavras de quem experimentou o abismo da existência e o amor de uma Presença que o preenche.