Sion: Um Carisma que se renova
Elio Passeto
Queridos (as) irmãos (ãs) de coração e de Congregação!
Continuando nossa caminhada de celebração dos 175 de nossa fundação, partilho com vocês minha reflexão no contexto de nossa Congregação que nos constitui uma grande família como expressão da vontade de Deus para a Igreja, revelada a Alphonse e interpretada pelos dois irmãos Ratisbonne.
Eu gostaria de iniciar nossa reflexão com uma afirmação de Marie Alphonse que me parece ser verdadeira e apropriada para nós e para nosso tempo.
As obras de Deus nunca terminam, elas tendem constantemente assumir um novo desenvolvimento. (1)
Primeiramente, às vezes a novidade nos perturba, às vezes não estamos acostumados a aceitar o novo e talvez, às vezes, não damos espaço para o surgimento do novo.
Dado que esse comportamento é parte do individual, essa prática pode acontecer de forma coletiva, de forma comunitária, pois somos a soma de indivíduos.
Evidentemente com isso não estou afirmando que devemos viver do imediato e não entendo também que devemos abandonar ou não valorizar ou mesmo cancelar o passado, o que recebemos.
Eu entendo, em nosso caso, como família religiosa, somos filhos e filhas do projeto de Deus que foi revelado e os sinais de Deus foram manifestos de forma concreta e visível. Assim como a realidade e as circunstâncias mudam, o projeto de Deus segue a dinâmica de nossa existência. Este ato fundante deve sempre ser mantido.
Os desígnios de Deus têm a semente do novo. Como disse Alphonse: ‘Eles constantemente assumem novos desenvolvimentos’. É preciso ser entendido que, da parte de Deus, o projeto nunca cessa ou envelhece, mas nós podemos provocar seu término.
É nessa perspectiva que deve ser lido e entendido Mt. 13, 52, em que se diz: “Cada Escriba que é instruído no Reino de Deus é comparado a um pai de família que faz sair de seu tesouro coisas novas e velhas”.
O aspecto velho nesse caso significa o período de nossa fundação, marcada pela experiência da revelação e de sua interpretação em vista da constituição de nossa Congregação; o novo é o nosso tempo, nossos valores, nossa maneira de viver esse chamado de Deus e nossa maneira de interpretá-lo. Nosso momento é o espaço para a convivência harmoniosa desses dois componentes: ‘fazer sair do tesouro coisas novas e velhas’.
Um exemplo disso é como o povo de Israel celebra a Páscoa em que cada um, hoje, vive a experiência da saída do Egito. É uma maneira existencial de dar vida a um acontecimento.
Evidentemente não se entende e não se explica os mistérios de Deus, com diz São Paulo: “Ò abismo da riqueza, da saberia e da ciência de Deus! Como são insondáveis seus juízos e impenetráveis seus caminhos! (Rom 11, 33) A questão é: nós, de Sion, estamos convencidos (as) de que nosso início é parte dos mistérios de Deus?
Ao estarmos convencidos (as) de que nossa fundação é parte do plano de Deus, nossa responsabilidade será consequente com essa convicção e nós seremos guiados a partir desse mistério.
A própria Bíblia nos ensina um dado importante que devemos ter sempre diante de nós: a compreensão correta do plano de Deus, a compreensão do que Deus revela e espera de nós em cada circunstância e em cada momento, está baseada na constante busca e não podemos nos sentir satisfeitos com a resposta obtida.
Por isso, o sentimento de estarmos satisfeitos é um evidente sinal de que perdemos a primeira motivação, e nesse caso o chamado de Deus para conosco já permaneceu no passado e não está mais conosco no momento em vista do futuro.
Faz-se necessário para nós, em Sion, um constante despertar para a prática dessa dinâmica. Nosso momento fundador, seus valores, suas dificuldades, as esperanças vividas naquelas circunstâncias, tudo isso, são elementos que devem estar presentes em nossa maneira de ser Sion em cada momento.
Devemos reler a história de nossos fundadores. Antes de ler comentários sobre eles, devemos ler os textos dos fundadores e entender seus contextos.
Eu exemplificaria dizendo que, para entender melhor o contexto de Jesus, seus ensinamentos, é necessário entender o Novo Testamento no seu contexto cultural, religioso, político e não nos basearmos nos Padres da Igreja que tiveram uma compreensão de acordo com o período de cada um. Sem negar os valores dos Padres da Igreja, eles não podem substituir o momento fundador. Os Padres viveram, como nós, em um momento dado, após o ato fundador. E a compreensão da revelação do plano de Deus depende dos valores e conceitos do momento em questão.
Com isso estou afirmando que nossa Congregação foi primeiramente o fruto da vontade de Deus. Os sinais dessa revelação foram interpretados e transmitidos definitivamente depois do 20 de janeiro de 1842. Evidentemente, de forma retroativa, nós podemos ver que Deus trabalha antecipadamente e os sinais são percebíveis precedentemente ao momento da revelação, (como o nascimento de Jesus, está presente em Abraão, mesmo em Adão). Mas, no nosso caso, o ato iluminador aconteceu somente aos 20 de Janeiro de 1842, em Santo Andre Del Fratte, Roma.
A partir deste momento, os dois irmãos entenderam que eles deveriam somar suas forças, porque o chamado de Deus se dirigia a ambos; porém, ao mesmo tempo eles continuaram na busca de entender os sinais de Deus para eles, sem com isso cessar os passos da caminhada. Eles estavam seguros de que deveriam seguir em frente, que era um chamado especial de Deus para ambos na Igreja e para a Igreja em vista do mundo.
Mas a pergunta persistia: como realizar esse chamado? A resposta foi sendo dada à medida que eles avançavam na obra. Eles nunca afirmaram terem entendido completamente o chamado. Porém, sempre seguiram positivamente a condição de não estarem satisfeitos, de não entenderem tudo; o estado de ‘não satisfação’ foi a motivação para continuar. Fazer a pergunta, questionar, foi, para ambos, fonte de esperança, pois estavam seguros de que eram instrumentos de Deus.
Théodore e Alphonse entenderam a revelação de Deus na perspectiva profética, como disse Isaías 49, 1: “Desde o seio de minha mãe o Senhor chamou-me, desde o útero de minha mãe o Senhor chamou-me pelo nome”. Como também disse o profeta Jeremias, 1, 4-5: “A Palavra do Senhor foi-me dirigida nesses termos: Antes mesmo de te formar no ventre materno, eu te conheci; antes que saísses do seio, eu te consagrei...” Paulo, aos Gálatas (1, 15) diz a mesma ideia: ” Quando, porém, aquele que me separou desde o seio materno e me chamou por sua graça...” Devemos entender que o tempo identificado pelas pessoas não corresponde ao momento de Deus.
Quando nós lemos o impacto que os dois irmãos causaram na Igreja e na sociedade naquele tempo, em que todas as instâncias da Igreja se envolveram para seguir o acontecido com os dois e o que eles faziam com a fundação e sua missão, nós percebemos que nosso início não foi um acontecimento privado ou particular, foi um acontecimento universal. Na verdade, não é algo que nos pertence, que pertence à Congregação de Nossa Senhora de Sion. Nós somos os (as) administradores (as) desse dom oferecido à Igreja.
Eu gostaria de mencionar uma Aggadá judaica sobre Abraão que pode ilustrar para nós o chamado de Deus aos dois irmãos a partir do 20 de janeiro de 1842 e ler as consequências para a Igreja:
Havia um vaso de perfume fechado e posto em um lugar fixo. Alguém o tomou consigo, abriu-o e o transportou de um lugar para o outro; dessa forma o perfume foi sentido, apreciado e conhecido por muitas pessoas e em muitos lugares. É isso o que aconteceu com Abraão. Ele vivia entre os idólatras e o Santo, bendito seja Ele, disse: ‘Deixa tua terra, o lugar de teu nascimento, a casa de teu pai e vai para uma terra que Eu te mostrarei... sê uma bênção’!
Guardando as proporções, essa aggadá exemplifica o chamado de Deus aos dois irmãos Ratisbonne. Seguindo os passos de Abraão, como peregrino em diferentes países, tendo na motivação da fundação sempre como referência a Terra de Israel e Jerusalém, os dois irmãos foram testemunhas da fé inabalável em Deus e por isso se tornam fonte de benção para o mundo. A presença da Congregação de Nossa Senhora de Sion na Igreja e no mundo é causa de bênção. Como Abraão a Congregação é um perfume que exala para o mundo.
Frequentemente, em nossa história ou na forma de contar nossa historia, nós enfocamos o aspecto dos fundadores serem judeus e de se terem tornado cristãos. Na verdade, com isso, nós projetamos uma dicotomia presente na consciência cristã, criando, com isso, o critério para explicar o mistério da revelação de Deus aos irmãos Théodore e Alphonse.
De fato, os dois irmãos não tinham essa compreensão dos fatos, eles não viviam nessa dicotomia. É evidente que eles viveram em um determinado tempo, com seus próprios valores e suas influências, mas nosso início, como Sion, foi único no tempo moderno; os dois irmãos mantiveram a relação com a realidade judaica, eles assumiram o aspecto judaico sem distúrbios na forma de ambos serem cristãos.
As gerações que seguiram nossos fundadores, que viveram em uma realidade diferente da de ambos, não fizeram a mesma experiência dos dois irmãos. Elas interpretaram esse momento fundador e o transmitiram segundo os conceitos e compreensão de seus respectivos tempos.
Por isso, essa compreensão das gerações sucessivas não pode nos tirar, hoje, a responsabilidade da busca da compreensão do chamado de Deus para os dois irmãos, segundo nosso tempo e conforme os nossos conceitos. Essa é a condição para manter o momento fundador sempre vivo, eternamente presente e atualizado.
Em nosso tempo, a Igreja insiste, através de seus ensinamentos, sobre a formação de um novo renascer e um renovar da atitude cristã em relação aos Judeus e ao Judaísmo. O progresso feito é grande, mas há um grande trabalho por fazer. Os responsáveis pela formação da consciência religiosa devem, como foi repetido constantemente, estarem eternamente em aprendizado. A pregação e a catequese são os lugares privilegiados onde esses ensinamentos devem ser apresentados de forma integrada na vida cristã.
Malgrado os grandes passos dados, uma linguagem nova e uma nova maneira de pensar não foram ainda formuladas para expressar os avanços dos ensinamentos da Igreja a partir de nossas raízes. Isso exige uma experiência de vida, não simplesmente um conhecimento intelectual. É necessária uma fé sensível para poder mergulhar nesse oceano que é a Tradição judeu-cristã.
Indivíduos podem fazer isso e muitos estão fazendo, mas há um risco de perder a dimensão de Igreja e não ter continuidade. A Comunidade Religiosa é constituída para esse fim. É o veículo que porta e sustenta a elaboração dessa experiência requerida e pode ser o laboratório para a nova linguagem exigida na Igreja. Para mim, nosso lugar hoje, como Sion, está aí.
Não vamos perder nossos objetivos com os números dos membros. Théodore e Alphonse eram somente dois e sem estrutura; eles somente acreditaram que eram chamados por Deus para uma missão.
Devemos também ter claro que nosso nome ‘Sion’ impõe uma exclusividade teológica que se enquadra perfeitamente nos ensinamentos da Igreja sobre a importância do Judaísmo par a fé cristã.
Nenhum cristão tem o direito de se dispensar da praxes da justiça social e de primar pelo bem do outro na sua prática. Ao mesmo tempo todos (as) os (as) cristãos (ãs) são obrigados (as) pela própria fé proclamada a serem testemunhas do amor de Deus pela humanidade; por essa razão, a vida religiosa, qualquer que seja a particularidade de seu carisma na Igreja, está incluída nesses deveres.
Isso deve ser claro para nós em Sion que todos os elementos que constituem a vida cristã devem ser parte de nosso ser Sion. Contudo, nós não podemos priorizar nossos esforços em aspectos que são comuns a todos os cristãos, deixando de lado nossa particularidade na Igreja.
Como disse antes, nossa vocação não pertence a nós mesmos; nós somos administradores dos dons dados à Igreja. Por isso devemos entender que a Igreja não será completa sem nossa parte - nossa especificidade é vital para a plenitude da missão da Igreja no mundo.
Essa nova linguagem deve abraçar todo o nosso ser Sion, todas nossas atividades: a partir da catequese de base feito por Sion, nossa formação nos colégios, nas paróquias, nas universidades... Isso não é específico de uma pessoa ou de um lugar onde Sion atua, mas deve cobrir tudo o que abraça a Igreja.
No entanto, nós devemos mostrar nossa identidade, isto é, nossa singularidade de ser Igreja ou a particularidade da Igreja que somos nós.
Nesse momento de Pentecostes, somos convidados (as) a refletir seriamente em nosso ser Sion. Penso sempre que esse tempo litúrgico proposto não é um espetáculo visível e caímos no erro cada vez que tentamos historicizá-lo. O Povo de Israel (também Jesus) celebrava a conclusão do período pascal na festa de Shavuot (semanas).
Se na Páscoa o povo está saindo da Terra, em Shavuot está estável na Terra (Terra de Israel) e apresenta seus frutos. Se na Páscoa Deus ajuda o povo a sair e o alimenta, em Shavuot Deus acolhe povo e recebe os produtos em forma de sacrifícios...
Por isso, a exemplo de Shavuot, o Pentecostes não deve ser uma festa para se ver um espetáculo, não é celebração de um ato passível a que o povo assiste; ao contrário, o povo é ator, ele participa.
Mesmo que liturgicamente celebramos essa festa anualmente, temos motivos para celebrar essa novidade em Sion a cada dia. Ela ilumina nosso Carisma e nosso Carisma deve fazer eco do conteúdo da festa: “Achavam-se então em Jerusalém judeus piedosos, vindos de todas as nações que há debaixo do céu” (Atos 2,5). Somente podemos entender essa festa no contexto judaico. São os judeus que a celebraram e foram eles que no-la transmitiram.
O relato da presença do Espírito Santo não é milagre, é fruto de estarem unidos, de estarem buscando entender o novo, de perscrutarem a Palavra de Deus, de estarem em expectativa, de terem superado o individual e estarem em comunhão. Dados estes que devem estar presentes em cada uma e em cada um de Sion para sermos fontes de bênção, como Igreja, no mundo.
Meus votos a cada irmã e irmão de Sion, por ocasião da celebração de Pentecostes, que sejamos como o espaço do Hidush (renovação), das disposições e motivações primeiras do ser Sion.
In Sion Firmata Sum.
Elio Passeto, nds
Jerusalém, Pentecostes, 2017.
[1]. P. Marie, chapitre XLII, 1868.