Bento XVI: Uma Última Conversa

Elio Passeto


Há poucos dias eu anunciei o lançamento do último livro-entrevista, em italiano, de Bento XVI (1). Terminando de lê-lo apresento aqui minhas impressões dessa leitura. É apenas uma antessala para os que vão lê-lo no futuro e uma rápida informação para os que não poderão fazê-lo Minha intenção não é elaborar uma resenha deste livro que acabo de ler; eu gostaria, sobretudo, de partilhar minha impressão da leitura sobre um ângulo muito pessoal.

Por isso o que escrevo não sugere a substituição da leitura do livro e não pretende, necessariamente, enfocar os seus aspectos centrais. É uma reflexão completamente subjetiva. ​ ​​

Não é o primeiro livro em que Ratzinger conta sua história. Sob certos aspectos, nos outros ele falou mais e em profundidade de si mesmo, mas neste tem algo que me chamou mais a atenção.

Primeiramente, como o título indica (Últimas Conversas), pode ser a última vez que ele se expõe desta forma pessoal. Segundo, aqui ele fala após ter cessado sua função de Papa e agora, como Papa Emérito, pode falar do seu papado e do Papa atual. Esse fato não aconteceu na história.

Ademais, a extrema simplicidade que caracteriza todo o desenvolver do livro é algo surpreendente. O livro evidencia o óbvio, mas que é necessário ser dito: está claro que temos um Papa emérito e um Papa em exercício e não há nenhuma indicação, em absoluto, de confusão ou de divergência na função papal atualmente.

Eu o conheci pessoalmente e li vários de seus livros que são considerados um dos melhores nos temas que ele tratou. Conhecemo-lo como Papa que, na consciência da grande maioria da humanidade, representa uma posição entre as maiores do planeta. Sob o aspecto religioso, a função do Papa cobre o maior número de seguidores, mas seu reconhecimento, por parte das pessoas, transborda as fronteiras da Igreja Católica.

O livro não traz discursos teológicos, dogmáticos ou exegéticos, etc., que naturalmente se esperariam, dado sua grande sabedoria e por ter se ocupado desses temas toda a sua vida. Não, o Papa desce à terra, fala de coisas concretas, existenciais, experiências simples vividas. Ele se apresenta como um homem desvestido de todos os aparatos de poder, de fama, de glória. É extraordinário; pois, de fato, nada é extraordinário.

Eu seguirei o texto da edição em Italiano; portanto, os números que aparecem entre parênteses são as páginas das citações desta edição e a tradução das citações é feita por mim.

O entrevistador, Peter Seewald, é um profundo conhecedor de Ratzinger. Ele já fez 3 livros sobre Ratzinger: 1996 (Sal da Terra), 2000 (Deus e o mundo) e 2010 (Luz do mundo).

Peter não somente tem um conhecimento muito próximo de Bento XVI, como é familiarizado com o universo no qual se movimentou Ratzinger: os lugares, as pessoas com quem ele conviveu, o universo cultural de onde ele tirou sua sabedoria, sua trajetória no interior da Igreja desde o início até o momento atual.

Por isso esta entrevista encerra elementos muito particulares do personagem em questão. E ao que tudo indica, Ratzinger se deixou levar, voluntariamente, por esse tipo de raio X que lhe foi feito.

Suas respostas são lacônicas, às vezes mesmo se limitando pelo sim ou pelo não. Em alguns casos apenas afirmando: isso não é verdade. O autor permeia o relato com anúncios de muitos momentos de risos face à afirmação ou perguntas provocadoras.

O livro parte de seu momento atual, da vida reservada do Papa emérito, depois faz um salto para a sua primeira infância, sua família, as dificuldades vividas no período da guerra, seus anos de estudo e percorre todas as etapas de sua vida; no término do livro o assunto retoma os dias de hoje com uma abertura para o amanhã.

Mas o que transparece em todo este livro é a humanidade deste homem. Completamente humano, ele fala com serenidade das incompreensões vividas e não conhece o sentimento de rancor.

Firme em suas convicções como pessoa de fé, inabalável em sua existência e de olhar seguro na eternidade, por outro lado não esconde suas buscas, suas perguntas, suas divergências, seus fracassos e frustrações e seu respeito extraordinário pelo diferente.

Como sabemos ele teve uma atitude única ao renunciar de sua função de Papa. Nos últimos 1000 anos não tivemos essa prática na Igreja. Fê-lo com serenidade, sendo fiel à sua vocação e ao mesmo tempo respeitando e protegendo a função na Igreja.

Ele mesmo afirma: “Nenhum Papa se demissionou nos últimos mil anos e mesmo no primeiro milênio constitui uma exceção. Por isso uma tal decisão não é fácil de tomar e se deve ponderar por um bom tempo” (31).

Bento XVI justifica dizendo que sua demissão não foi sob pressão, mas como um ato responsável de alguém que entendeu que não estava mais à altura da responsabilidade; era necessário que outro assumisse em seu lugar. Isso para proteger a missão na Igreja e não para salvar a pessoa do Papa em sua função.

Ao tomar tal decisão pessoal Bento XVI dá prova de um ato de liberdade no interior da Igreja, mesmo sabendo que essa decisão não era consensual; estava certo que este ato não está em contradição com a tradição da Igreja; ao contrário, é parte da história da Igreja em que o novo tem o seu lugar.

O critério é simples: a instituição está para servir as pessoas, as pessoas para servir a Deus, assim a função é serviço e não algo estático. Disse ele: “se não há mais a capacidade de fazer o que é pedido, é necessário - ao menos para mim, outra pessoa pode pensar diversamente - deixar livre o lugar” (36).

Mais adiante em seu comentário sobre sua demissão ainda afirma Ratzinger: “Penso que seja claro que mesmo o Papa não é um super-homem e não basta que esteja em seu lugar: ele deve executar com precisão as suas funções. Se se demissiona, mantém a responsabilidade que assumiu em um sentido interior, mas não na função.

Por isso pouco a pouco se entenderá que o ministério papal não é diminuído, mesmo que talvez ressalte mais claramente sua humanidade” (39).

Sobre o Papa Francisco disse que não esperava sua escolha, foi um surpresa e mesmo não julgava que ele fosse capaz para tal função, mas no momento que o viu rezando e se dirigindo ao povo entendeu imediatamente que era o homem justo na função justa e se alegrou com isso.

Seguida a pergunta se ele não julgava que o atual Papa não seria um pouco impetuoso e excêntrico, Ratzinger ri e comenta que “cada um deve ter seu próprio temperamento. Um talvez é mais reservado, outro mais dinâmico do que se imaginava. Mas eu penso que seja positivo que seja assim direto em relação às pessoas.

Me pergunto, naturalmente, até quando poderá seguir em frente. Para apertar mais de duzentas mãos cada quarta-feira há que ter muita força. Mas isso deixemos para ao bom Deus” (45).

Contrariamente ao que se pode imaginar, Ratzinger viveu uma infância normal dentro de um contexto pobre. Sua família era composta de 5 pessoas: os pais, ele, um irmão e uma irmã. Seu relato é cativante.

É surpreendente a vida simples na qual foi criado em família. E essa austeridade o acompanhou sempre. Nunca viveu em berço de ouro. Sua família vivia do duro trabalho cotidiano e ele, mais tarde, foi professor, mesmo sendo ordenado sacerdote e Bispo. Sua vida de fé a recebeu na família e foi sempre sua fonte de amor.

Ao longo de todo livro evidencia-se a vida despegada que viveu. Aos 19 anos (1946) inicia seus estudos superiores: Filosofia e Teologia. Ratzinger comenta que viajou de trem acompanhado de seu irmão Georg e que levava consigo apenas “roupa de cama e um pouco de coisas para viver. Talvez uma muda de roupa e alguns livros, mas pouco porque não tínhamos” (75).

Penso que a função exercida ofuscou sua verdadeira imagem e mesmo produziu uma injustiça contra ele. De fato, na vida real todos vivemos mal nosso cristianismo, mas culpamos o Papa porque a Igreja não está bem.

Ele não tem uma varinha mágica para resolver os problemas que são causados por todos. De certa maneira esperamos que o Papa exerça a função de mágico e não de Pastor da Igreja.

Ele expõe sua paixão pelo novo e sua inquietude diante do presente. Seu período de estudo foi no pós-guerra na Europa em que tudo deveria ser reinventado. Ele viveu os grandes sonhos de mudanças e lutou para isso; no final se percebe que foi este espírito que o levou a tomar a decisão de se demissionar.

Os tempos são outros, evidentemente, mas ele manteve acesa a mesma chama de busca do novo a partir do velho e não contra o velho, ele insiste.

Em seus anos de estudo ele mesmo se define como um progressista dizendo: “Éramos progressistas. Queríamos renovar a teologia e com ela a Igreja, tornando-a mais viva. Tivemos a chance porque vivíamos em uma época na qual, sobre o impulso do movimento jovem e litúrgico, se abriam novos horizontes, nova estrada.

Queríamos que a Igreja progredisse e estávamos convictos que dessa maneira ela seria rejuvenescida. Todos nós sentíamos um certo desprezo pelo século XIX, isto é, pelo novo gótico e todas aquelas imagens e estátuas dos santos um pouco ‘kitch’; pela devoção e o excessivo sentimentalismo um pouco restrito e também ‘kitch’. Queríamos superar entrando em uma nova fase de devoção, e a renovação partiu precisamente da liturgia, recuperando a sobriedade e a grandeza original” (83-84).

O entrevistador faz um comentário sobre seu conceito de sacerdote e cita a frase que Ratzinger usou como motivo de sua ordenação, que dizia: “Não somos os patrões de vossa fé, mas os servos de vossa alegria”. Ele pergunta como ele (Ratzinger) chegou à compreensão deste tema?

Ratzinger responde dando uma breve e importante explicação da função sacerdotal que é de grande atualidade, sobretudo para o mundo que confunde sacerdote com estrelas, com fã clube, em que o conteúdo não tem mais importância, mas sim o visual.

Disse Ratzinger: “No âmbito de uma concepção moderna do sacerdócio, não somente tínhamos adquirido a consciência de que o conceito ‘reverendo’ é equivocado e que o sacerdote é sempre um servo, mas tínhamos também desenvolvido um grande trabalho interior sobre este conceito para não subir sobre um alto pedestal.

Eu nunca me teria apresentado como um ‘reverendo’. Ser consciente de que nós sacerdotes não somos patrões, mas servos, a partir do meu ponto de vista, não era somente consolador, mas também importante para poder aceitar a ordenação” (91).

Se entende através de seu relato que toda a sua vida foi fruto do seu esforço pessoal. Como é normal muitos criaram inúmeras dificuldades até que ele conseguisse o que conseguiu. Suas conquistas foram, em parte, contra a corrente.

Quando começou sua vida profissional, como professor de teologia, teve que superar muitos obstáculos: seus superiores que não o liberaram para tal ou tal função; nas universidades nem sempre o aceitaram ou por suas ideias ou por ser jovem ou por não vir do mesmo milieu dos grandes nomes da época.

Ratzinger, a convite do Cardeal Frings, foi um experto no Concílio Vaticano II. Sua contribuição foi muito importante na preparação dos textos e na veiculação das novas ideias teológicas que se fomentavam na época e que foram traduzidas nos documentos do Concílio.

Ele descreve em detalhes seu encontro com o mundo universal da Igreja, principalmente o contato com grandes nomes naquele momento, como Lubac, Daniélou, Ives Congar, Von Balthazar, porém sempre se reconhecendo como um pequeno neste convívio e que estava ali para ajudar e para aprender.

Disse Ratzinger: “A pluralidade e o encontro com personagens eminentes, que, por outra parte, tinham a responsabilidade de tomar decisões, foram experiências inesquecíveis” (122).

Ratzinger viveu e bebeu das melhores fontes do saber. Juntamente com sua carreira eclesiástica, ele encarnou o professor, o pesquisador. Porém esses conceitos são verdadeiros para ele. O conhecimento não é divorciado da reflexão existencial, parte do concreto e deve conduzir ao concreto.

Depois de uma troca de informações sobre sua relação com esses grandes personagens que ele conheceu e que tornaram-se amigos e cooperadores na reflexão da teologia da Igreja, Ratzinger comenta sua relação com Balthazar.

Foi-lhe pedido para fazer um comentário dos livros de Balthazar (Verbum Caro e Sponsa verbi), nos quais teve que trabalhar seriamente o conteúdo; como conclusão, ele faz uma interessante reflexão do que ele entende por conhecimento acadêmico: “Naqueles volumes estava presente a teologia dos Padres da Igreja, uma visão espiritual da teologia, que nasce da fé e da reflexão, profunda e nova ao mesmo tempo.

Não era coisa acadêmica que no final não faz nada, mas uma síntese de erudição, autêntico profissionalismo e profunda espiritualidade. Essas foram as características que me conquistaram. A partir deste momento se instalou entre nós um profundo vínculo” (140).

Sabemos que, como preparação para o ano jubilar de 2000, o Papa João Paulo II quis fazer uma purificação da memória da Igreja e para isso anunciou que a Igreja pediria perdão pelos seus erros cometidos no passado.

Essa iniciativa provocou reações contrárias por parte de muitos cardinais, não julgando oportuno tal iniciativa; segundo esses opositores, o ato de pedir perdão demonstraria fraqueza por parte da Igreja. Finalmente foi realizado por decisão do Papa, mas permaneceu uma sombra sobre vários nomes de cardinais, inclusive Ratzinger como um dos opositores.

O entrevistador perguntou-lhe se os boatos eram ou não verdadeiros. Sua resposta foi clara: “Não. Eu estava de acordo. Penso que seja lícito se perguntar se as muitas mea culpa têm verdadeiramente sentido. Mas que a Igreja, a partir do modelo dos Salmos e do livro de Baruc, por exemplo, confessar as faltas cometidas ao longo da história, eu também julgo isso justo” (163-164).

Na vida o importante não é a perfeição mas saber administrar as deficiências humanas. Esta máxima também se aplica à Igreja. Perguntado sobre os problemas que ele teve que resolver oriundos do período de João Paulo II e os que ele não resolveu e deixou para o seu sucessor, Ratzinger responde dizendo que João Paulo II solucionou o que era possível, mas nem tudo tem solução.

Como fruto de uma instituição em movimento, como a sociedade, os problemas vão sempre surgir, faz-se necessário a invenção de novos modelos. “Na Igreja permanece sempre problemas insolúveis, especialmente em nossa época, depois das grandes transformações pós conciliares, a grande confusão derivada do fato de não saber como verdadeiramente se deveria ler o Concílio.

A complexidade de nossa sociedade é tal que o cristianismo deve encontrar uma nova orientação, novos modos para se definir e realizar-se. Neste sentido existiram e sempre existirão problemas” (181).

Sua franqueza é sempre exemplar. Não se esconde atrás de comentários de segundo. Sempre ao longo do livro fala do que sabe e sobre o que não sabe, não tece nenhum comentário, dizendo não conheço esse fato ou não é verdade esse comentário. Ratzinger não ignora seus opositores e os vê dessa forma.

Depois do grande alvoroço que se criou com a publicação do documento ‘Moto Proprio’ em que libera sob condição a missa em latim, Ratzinger introduziu uma reforma na oração anti-conciliar contra os judeus, mesmo esta nova oração provocou rumores.

Ele justifica e explica a intenção do texto e o que é novo nessa oração, mas faz uma afirmação muito típica de seu espírito livre e consciente dos opositores dizendo que a polêmica “é uma montagem dos teólogos alemães que não são meus amigos” (186). Creio que o fato não seja novidade, são atitudes que compõem a natureza humana, mas não é habitual a exposição destes dados pessoais do Papa; mesmo que emérito, é Papa para sempre.

O entrevistador faz uma reflexão em forma de pergunta que muitos gostariam de fazer e é simples: “Aconteceu em sua vida um momento em que se pergunta se tudo o que acreditamos sobre Deus não é somente uma ideia? Se um dia não se deveria despertar-se e dizer: sim, equivocamo-nos?”

Ao que o Papa responde sem negar a realidade de dúvidas e de perguntas existenciais: “A pergunta: ‘tudo isso tem verdadeiramente um fundamento?’ naturalmente isso acontece em cada pessoa, mas eu tive tanta experiência concreta de fé, experiência da presença de Deus, que tenho armas suficientes para superar esses momentos” (194).

Mesmo sobre o problema do Banco do Vaticano (IOR) o entrevistador fala do aspecto obsoleto de seu funcionamento e que o Papa Francisco está tentando reformar. Ele informa que a questão não é de agora e a tentativa de reforma já começou há tempo e não será agora sua solução, mas está em via de nova adaptação. Ao ouvir a imprensa sobre o tema dá-se a impressão que foi o Papa atual que identificou o problema e está tentando solucionar a questão.

O que se percebe é uma continuidade harmoniosa de decisões tomadas antes e que deveriam ser continuadas, mas em um certo momento Bento XVI concluiu que ele não teria a força necessária para dar prosseguimento. Sem sua decisão histórica e profética, não seria possível algumas mudanças positivas que estão sendo feitas. Sobre a questão do Banco do Vaticano ele fala com clareza o que se passou.

Deixo aqui algumas de suas afirmações para perceber o espírito de sua fala. “Para mim desde o início o Banco do Vaticano (IOR) foi uma questão aberta e eu tentei reformá-lo. Não são operações que se leva a termo rapidamente, pois é necessário familiarizar-se. Foi importante o afastamento da direção precedente.

Era necessário renovar o vértice e me pareceu justo, por muitas razões, a não nominação de um italiano na direção do banco. Posso dizer que a escolha do barão Freyberg foi uma ótima solução.” Perguntado se essa foi sua ideia, Ratzinger responde afirmativamente: “Sim, foram acrescentadas depois leis que promulguei para excluir a reciclagem, promulgada sob minha responsabilidade e reconhecida em nível internacional.

Portanto, fiz diversos passos para reformar o Banco Vaticano. Reforcei as duas Comissões Internacionais de controle constatando progressos evidentes. Trabalhei em silêncio seja sobre aspectos organizacionais, como legislativo. Penso que agora pode-se renovar esses esforços e partir daí”.

Sobre as mudanças é muito realista e objetivo: “... Os problemas estruturais se entrelaçam com os legais e pessoais e as medidas tomadas apressadamente podem estragar uma situação em vez de melhorá-la. Por isso se pode preceder somente lentamente e com prudência”(209).

Sobre os escândalos diversos que tomaram de surpresa o Vaticano, Ratzinger reage apontando para responsabilidade que não foram assumidas, dizendo: “não compreendo, se esses casos eram assim notórios, é incompreensível, inconcebível que ninguém entre nós não tivesse percebido” (210).

Como informação de como as coisas não são sob seu controle, outros órgãos internos também interferem e organizam a vida interna no Vaticano e mesmo do Papa. O famoso caso de seu mordomo que roubou o material confidencial do Papa e o transmitiu a um jornalista, é um exemplo.

Bento XVI comenta: “Gabriel não foi minha escolha. Eu não sabia nem mesmo que era ele. Ele passou através do sistema, através dos controles (de aceitação para o trabalho n.t.). E parecia ser a pessoa justa sob todos os aspectos” (213).

Sua reflexão é categórica sobre as pessoas que fazem a vida do Vaticano, que ali trabalham e vivem. Não é um ninho de cobras. Há uma realidade humana e por isso ali também se manifesta as fraquezas, as ambições e os pecados das pessoas, mas não devemos concluir que o Vaticano é somente isso.

Os fatos edificantes não são mediatizados e não chegam ao grande público. “Devo ser claro: todas essas coisas existem, é verdade, mas elas não representam todo o Vaticano. Há muitas pessoas verdadeiramente boas que trabalham com grande dedicação de manhã à noite. Eu conheço tanta gente boa que devo dizer: é necessário aceitar também isso (o menos bom).

Em um organismo composto de muitas mil pessoas é impossível que todos sejam bons. É necessário admitir a existência dessas pessoas e isso é muito doloroso, mas não se pode ignorar os outros. Impressiona-me tantas pessoas que encontro que querem fazer alguma coisa de coração para Deus, para a Igreja e para os outros. Quantas bravas pessoas encontrei aqui. Para mim essa realidade resgata todo o resto e então digo: assim é o mundo! Assim o Senhor ensina! Na rede há também peixes ruins” (214).

Estaria ele insatisfeito de alguma coisa, pergunta o entrevistador? Responde: “certamente, por exemplo, de não ter tido sempre a força de apresentar as catequeses no mundo mais penetrante e humano possível” (219).

Foi-lhe um prazer ter sido Papa? A pergunta foi direta como o foi a resposta: “Eu diria que sabia que seria apoiado, por isso sou grato por muitas bonitas experiências. Mas naturalmente foi também sempre um fardo” (222).

No final do livro lhe é perguntado se ele, que teve o amor como tema central em sua vida, como estudante, como professor e como Papa, que lugar ocupou o amor em sua vida, que experiência fez do amor, foi algo experimentado ou permaneceu para ele como uma questão teórica, filosófica? Traduzo aqui na íntegra sua resposta que é curta: “Não. Não, não. Se não se sente o amor não se pode mesmo falar dele.

Eu o senti primeiramente em casa, com meu pai, com minha mãe e com meus irmãos. E em seguida, não vou aqui descer em detalhe privado, mas fui tocado, em diversas dimensões e formas pelo amor. Ser amado e restituir o amor aos outros eu sempre considerei fundamental para poder viver, para poder aceitar a si mesmo e aos outros.

Enfim tornei-me sempre mais consciente que Deus mesmo não é somente, digamos, um soberano onipotente, uma potestade distante, mas é amor e me ama e, consequentemente, deve ser a bússola de minha vida. E eu devo me deixar conduzir por Ele, por essa força que se chama amor” (226).

Concluo dizendo que me foi uma leitura muito agradável a deste livro. Foi como sentar-se com um ancião e escutar um pouco de sua experiência que atravessa o tempo, sobretudo em uma perspectiva de Igreja atual. Como também sentir alguém realizado totalmente como pessoa, completo com o que fez.

​Um homem que esteve no patamar mais alto das funções e não deixou de ser pessoa, não perdeu a simplicidade de ser. Contemplando sobre o ocaso de sua vida, ele não vê as trevas que se anunciam, mas a aurora que rompe a noite e que traz a luz eterna do dia.

Élio Passeto, ​Jerualém, Israel

Notas:
(1) Benedetto XVI - Ultime Conversazioni, a Cura di Peter Seewald (traduzione di Chicca Galli), Garzanti, 2016.